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::. Autor: Gustavo Poli (Jornalista/Agência Globo)
Valeu!!Em 1931, o catalão Salvador Dalí pintou o quadro mais famoso do surrealismo, “A Persistência da Memória". Os relógios se derretendo viraram um ícone pop e receberam as mais diversas interpretações. Para alguns, eles representariam a hora intermediária entre a vigília e o sono. Para outros, a desarticulação do tempo e o inevitável declínio de tudo e de todas as coisas. Ambas as imagens nos servem, nesta manhã de domingo, para falar de uma grande derrota catalã. E de uma espetacular vitória gaúcha.
A hora intermediária seria o presente - aquele instante que não é futuro nem passado, não é dia nem é noite, não é ontem nem amanhã. É o instante com sensação de eternidade, esse que a torcida do Internacional está vivendo desde o apito final do árbitro guatemalteco na manhã de hoje. Será um longo domingo, o maior dos domingos, o domingo que coroa 2006, o mais colorado dos anos. A grande tragédia é que esse instante passa – e essa felicidade plena e suprema vai embora. Fica a voz rouca, o chope bebido e a tinta nas caras-pintadas. A memória, porém, essa persiste. Até o dia em que o relógio de cada um se derreter.
Entre o sono e a vigília, acordaram os colorados às oito da manhã para acompanhar a partida mais importante de sua história. Do outro lado estava a Catalunha, pátria de Dalí, em sua identidade futebolística - o Barcelona. O time dos 100 mil sócios, a lendária camisa que já vestiu Cruyff e Maradona e agora envelopa uma legião de craques. A melhor equipe de futebol do planeta.
Mas todo Super-Homem tem sua kriptonita. Toda cinderela tem sua meia-noite. E a meia-noite do Barcelona chegou às dez da manhã brasileira. A dose colorada de kriptonita veio em forma de rapidez, seriedade e marcação. O Barça sucumbiu. Foi uma vitória coletiva, uma vitória maiúscula de um time que jamais será chamado novamente de Municipal ou Intermunicipal. A brincadeira gremista está para sempre enterrada. Foi uma vitória internacional, mundial sobre o Barça interplanetário.
O Inter sabia que o Barça era melhor. Sabia que era necessário vencer na trincheira, na guerrilha, esperando o momento do bote. Para isso, Abel ajeitou suas linhas para reduzir espaços. Mas planejar é fácil, fazer não. Deco e Iniesta se movimentam muito. O Barça soube sair da marcação, teve suas chances. Poderia ter vencido o jogo. Mas o Inter jogou o futebol gaúcho por definição - aquele futebol brigado, raçudo, que ignora o verbo desistir. O Colorado correu, sangrou, sofreu, teve cãibras. Vibrou, suou, atropelou.
Como vosso humilde servo anotou no post ali embaixo – o Barcelona é um time que joga para atacar. E não se recompõe sempre como rapidez. Defender não é sua especialidade. O Inter sabia que era necessário jogar com inteligência – sem se expor. Abrir espaços para o Barcelona é convidar a tragédia. Mas futebol não tem dream team. Não existe time que entre em campo com a vitória garantida.
O Barça teve boas chances, mas nenhuma cristalina. O Inter teve erros, teve falhas – mas acertou na hora decisiva. Quando Fernandão pôs a mão na panturrilha... e Adriano se aqueceu... o que pensou o torcedor colorado, que não se cansou de vaiar a ex-promessa Gabiru? Adriano, que sempre foi um apoiador artilheiro no Atlético-PR, tinha luzes no cabelo. Fernandão vinha jogando mal. O troféu parecia distante.
E lá foi Adriano, estranhamente iluminado. Lá foi ele cabecear a bola rebatida pela defesa colorada. Cabeceou para o círculo central, onde a bola encontrou outra predestinada cabeça, a de Luiz Adriano. O garoto que marcou o gol decisivo contra o Al Ahli tocou para Iarley. Iarley, que jogou tudo o que não havia jogado contra o time egípcio, tocou na frente, entortou Puyol, avançou... levantou a cabeça... mediu o passe para a direita, onde estava Luiz Adriano. Não. A melhor opção estava à esquerda, no contrapé de Belleti. Por ali passava Adriano, em desabalada carreira. E veio o toque rasteiro, preciso - o passe mais importante da história colorada. Subitamente, em sua terceira aparição no jogo, lá estava o vaiado, criticado e maltratado Adriano, na cara do gol.
O chute saiu algo mascado. Valdés ainda triscou na bola, que morreu nas redes catalãs. Era o gol do título, o gol do artilheiro mais improvável já no outono da partida. Ainda assim, o Barça não arriou os pneus. Clemer ainda fez uma defesa espetacular num chute traiçoeiro e fortíssimo de Deco. Ronaldinho ainda bateu uma falta que raspou a trave. E Iarley pôs o jogo no bolso prendendo a bola na ponta esquerda.
O Inter, pelo segundo ano consecutivo, mostrou que ninguém ganha de véspera. Não que o Barcelona tenha sido presunçoso – não foi. As declarações de técnicos e jogadores foram sempre humildes. Mas a goleada sobre o América do México plantou no Inter aquela voto de pobreza, aquela fantasia de zebra que todo técnico agradece.
Em 1909, os irmãos Poppe saíram de São Paulo e quiseram jogar futebol em Porto Alegre. Procuraram o Fussball. Não foram aceitos. Procuraram o Grêmio. Foram rejeitados. Então, com inspiração na Internazionale de Milão (e no Internacional, campeão paulista), fundaram o mais vermelho dos times brasileiros. Noventa e sete anos depois, os jornais abrirão manchetes para dizer que o mundo é colorado. Como não seria diferente a história do futebol gaúcho se o Grêmio tivesse aceito os Poppe no início do Século XX... diferente e certamente mais pobre.
O Inter, que em 2002 namorou com o rebaixamento, repaginou sua história em quatro anos. Foi duas vezes vice-campeão brasileiro. Revelou Daniel Carvalho, Nilmar, Rafael Sóbis, Alexandre Pato. E ganhou do Barcelona de Ronaldinho tendo ilustres e criticados desconhecidos com Edinho e Wellington na escalação. Uma vitória inesquecível, maiúscula, gaúcha.
Saibam os torcedores do Inter que este domingo vai passar. A imagem de Fernandão com a boca aberta e a taça do mundo erguida vai virar uma fotografia amarelada. Abel vai embora, Iarley vai passar, Pato crescerá e será vendido. Os relógios continuarão andando mas no bolso de cada colorado haverá essa hora surrreal e congelada - na qual os derretidos ponteiros apontam 10h16min do dia 17 de dezembro de 2006. Era noite em Tóquio. Era manhã em Porto Alegre. Vai passar. Mas também vai ficar. Há instantes que levamos sempre conosco.
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